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24/12/2007 - O DOCE RABI
Miro Hildebrando - Doutor em economia/vbrando@uniplac.net.
Quando Judas, premido pela urgência de sua dor, subiu à árvore num entardecer quieto e distante, não se assustou quando foi ajudado, ao resvalar, por uma mão firme. A seu lado estava um homem de vestes alvas e resplandecentes, estranhamente sereno e tranqüilo, de olhos vivos e penetrantes, com sandálias poeirentas e braços fortes e queimados pelo sol. Em vez de agradecer, Judas gritou com ele e mandou que dali se fosse. Precisava cumprir seu destino, e tinha pressa em punir a carne e o espírito que, um dia, teve a coragem de trair o doce rabi com um beijo e entregá-lo à ferocidade de algozes cruéis.
No último instante, ainda percebeu a seu lado o mesmo homem pronto para lhe estender novamente a mão, mas prosseguiu em seu intento e lançou-se ao vento, e seu espírito partiu quase no mesmo instante para o vale das almas desesperadas.
Essa é a visão de um teólogo americano, que nos fornece um vívido retrato de Jesus como um homem de carne e osso, cuja generosidade e disposição inigualável para o perdão influenciaram e continuam influenciando muitas civilizações.
Mas, séculos depois, o gesto tresloucado de Judas não foi suficiente, e povos inteiros pagam caro por pertencer à sua raça. Ao longo do tempo, milhares de homens deixaram suas famílias e sua terra para entrar em guerra, e muito sangue foi derramado na crença de que o perdão dos pecados viria por meio do extermínio do semelhante, como nas cruzadas. Ao longo dos séculos, tanto judeus quanto árabes continuam pagando um preço terrível pela sua história, e o sangue continua a jorrar interminavelmente nas terras santas.
Em um período de estudos na capital americana, recebi certo dia a visita do senhorio em busca do aluguel, um tunisiano e muçulmano devoto que costumava insistir que seu pequeno país não pertencia ao mundo árabe. Olhando para um crucifixo pendurado na parede, indagou com voz ríspida: “E isso aí, vai continuar pendurado ou será guardado?” Em um átimo, os ódios ancestrais que separam raças e religiões me vieram à mente e ao coração, e respondi que sim, o crucifixo ficaria ali e era muito importante que assim fosse. Fitamo-nos tensos, crispados, durante alguns segundos, o bastante para entender que, ambos, só teríamos a perder com uma disputa física em um país que não era o nosso. Ele cedeu, e acabou dizendo-me que poderia fazer o que quisesse.
De certo modo, a civilização ocidental acabou dividindo-se no que diz respeito ao exemplo de Cristo, ao acreditar que pode almejar o paraíso depois de sofrer na Terra, ou imaginar que o paraíso pode ser construído com o suor do trabalho. É uma questão ainda discutida o porquê de os latinos, católicos em sua maioria, não terem conseguido se desenvolver e enfrentam atraso econômico e social, enquanto os países ricos – e calvinistas – atingiram o desenvolvimento e conseguiram, se não o paraíso na Terra, uma grande dose de conforto e proteção social, sem perder a religiosidade e o temor a Deus.
É claro que subsistem idéias paralelas, algumas delas francamente ridículas – como se o calor dos trópicos fosse uma razão relevante –, e os preconceitos são facilmente perceptíveis ao visitar outros países.
Temos todas as condições necessárias para desmentir quaisquer preconceitos quanto à raça – o brasileiro “café com leite” mostra uma alegria e vitalidade que impressionam a qualquer estrangeiro – ou fatores religiosos, culturais e até mesmo de disposição para o trabalho.
Talvez estejamos realmente iniciando uma época de prosperidade sustentável e possamos, em poucas décadas, olhar para trás e sentir orgulho das dificuldades superadas por muitos brasileiros desta geração. Isso tudo sem nenhuma forma de menosprezo para com nossa herança étnica e cultural recebida de muitas formas e múltiplas fontes; muito menos para com nosso sincretismo religioso, que jamais deixou de venerar o doce mestre de Nazaré.
Fonte: A NOTÍCIA |